Memórias
Tenho uma arca grande onde ninguém mexe. Venho guardado coisas ao longo dos anos com o terror de me esquecer o que vivi. Utilizo-as como atalhos, para quem sabe o que tal significa em linguagem informática. Cada artigo poeirento soltando odores há muito entranhados abre um ficheiro na minha memória caótica. Desconheço como é com o comum dos mortais, mas para mim um cheiro tem mais força que muitas visões, que muitos sons. Sempre assim foi. Uma figadeira latente que nunca oficialmente se manifestou, desde criança que operava em mim sensibilidades olfatosomáticas ( não sei se tal palavra existe mas vocês percebem, não percebem?) intensíssimas. Quando entrava em casa, vindo do exterior, com o primeiro pé a rasparr a soleira da porta já berrava que me cheirava a isto ou aquilo, para grande fúria da família. Perenemente incompreendido, em determinada época resolvi mostrar que me recolhia ajuizadamente numa concha socialmente anósmica, em benefício dos tímpanos dos entes mais queridos. Foi então que comecei a coleccionar, secretamente cheiros na pessoa dos objectos que os emanavam. Ombreiam hoje meias velhas, sapatos desirmanados, calças com nódoas de variegadas origens, camisas de padrões assustadores, pratos sujos, talheres ferrugentos com comida seca, frascos de colónia com um fundinho de líquido, flores já secas, pneus de moto, tintas de óleo, cartucheiras de cabedal, bolas de naftalina, livros encadernados a coiro, lenços e lencinhos dos mais diversos bordados, papéis amarrotados, livros de missa, santinhos, canetas de tinta permanente, braceletes de relógios, borrachas e lápis do colégio, bonés de pala e panamás desbotados, kimonos, pastas do liceu, panos diversos e mais alguns utilitários que me abstenho de mencionar pois ainda tenho alguma noção do decoro.
Quando a nostalgia me invade levanto a pesada tampa e, liberto das vestes que habitualmente me separam da Natureza, mergulho, qual Patinhas, nas parcas posses de um tempo que não volta, até que aquelas fragrâncias me anestesiem a pituitária. E revivo, história por história, todas as que por aqueles pertences foram testemunhadas. E vivo!
Quando a nostalgia me invade levanto a pesada tampa e, liberto das vestes que habitualmente me separam da Natureza, mergulho, qual Patinhas, nas parcas posses de um tempo que não volta, até que aquelas fragrâncias me anestesiem a pituitária. E revivo, história por história, todas as que por aqueles pertences foram testemunhadas. E vivo!
5 Comments:
Faz-me um favor... e vai lavar os pratos e os talheres!!!!!
O sr anda evoluir... anda a pagar a quem?
BJ
Gosto do que escreves.Estou a estrear-me neste mundo...dos email
como viverei sem esta aragem que me refresca, me encanta?
É que, se me apanha, a titas mata-me;venho dizer adeus, tenho que 'cavar' daqui para fora!
se eu sobreviver, voltarei...
§(~_~)§ beijo da Afrodite
(uma carinha d'anjo num corpo espectacular, com tudo no sítio, muito dentro do prazo, sem aditivos nem silicones)
Bravo Caríssimo! De como, pelo nariz, se pode chegar a uma espiritualização dos objectos. «Porque Inspirar é viver». Em todos os sentidos.
Eu também guardo os cheiros no baú das memórias. A par com as músicas.
Mas o meu baú não contém tanta coisa...De vez em quando, faço um defrag e apago files que não interessam :) Desses nem o cheiro fica.
E não te zangues por eu andar arredada; tadinha de mim, cheia de problemas, snif snif...
Beijocas, meu querido! :))
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