Artigo do Dr. Luís Canavarro*
Senhor Primeiro-Ministro
Excelência
Escrevo na qualidade de médico das carreiras hospitalares e faço-o numa publicação profissional por julgar que o assunto é do interesse de todos os meus colegas.
Dirijo-me ao Estado, entidade abstracta, meu empregador,que V.ª Ex.ª, por força das últimas eleições, legítima e indiscutivelmente representa.
E, desde já, asseguro que não me move qualquer intuito político. Debalde poderá V.ª Ex.ª buscar qualquer filiação partidária, que não tenho, nunca tive e julgo nunca terei. Tampouco achará V.ª Ex.ª no meu curriculum atitudes de reivindicação, de reclamação ou de contestação, fora do mais estrito âmbito laboral. Esta carta é tão-somente um pedido de decência nas relações de trabalho com a minha entidade patronal, ditada pelo frustrar do que cuidava serem as mais legítimas expectativas.
Quando há mais de um quarto de século aceitei começar a trabalhar para o Estado, fi-lo na convicção de que era uma entidade recta e íntegra ou, como em linguagem vulgar se diz, uma pessoa de bem.
Não o é, como ao longo dos anos vim constatando:
O Estado é um gestor ruinoso do bem comum, que todos pagamos. As contas públicas não deixam margem para dúvidas.
O Estado é caloteiro, paga pouco, tarde e mal mas, reciprocamente, é o mais temível dos credores. Basta ver como nega o princípio da compensação.
O Estado é iníquo e corrupto. Confirme-se, a cada nova ronda de eleições, o baile de apaniguados a ocupar furiosamente os lugares públicos, sem concurso, sem justificação e, pior que tudo, sem competência. De tal situação, deu V.ª Ex.ª o mais despudorado exemplo.
O Estado denega a Justiça. Ao recusar criar condições para uma laboração rápida e exemplar dos tribunais, ao legislar diplomas dúbios, efémeros, se não contraditórios, perpetua-se o primado do acordo de circunstância ou do acto administrativo sobre o que devia ser Justiça, límpida e rigorosa.
Mas, ainda que tenha criado do Estado uma tão má imagem, nunca julguei que se pudesse chegar a violar princípios fundamentais do Direito, como o da não retroactividade das leis. Princípios que fazem parte dos direitos, liberdades e garantias universais de cujo reconhecimento Portugal é signatário. Ao que parece pouco convicto.
Declarou V.ª Ex.ª publicamente a suspensão da progressão nas carreiras e o aumento da idade da reforma. A menos que se trate de mais uma afirmação para não cumprir, a que V.ª Ex.ª nos vai habituando, tal representa, pura e simplesmente, legislar com efeitos retroactivos à data de início do contrato de trabalho - 26 anos, no meu caso.
Ora, quando me vinculei à Função Pública, foi-me asseverado que teria o meu direito à reforma aos 60 anos e à progressão na carreira conforme prevista nos regulamentos aplicáveis.
Os descontos a que fui sujeito ao longo destes anos a favor da segurança social não são mais um imposto, mas sim uma quantia que é minha e que confiei ao Estado para que a guardasse, investisse e finalmente provesse à minha reforma, segundo os termos acordados.
Nas recentes medidas económicas de excepção, sacrificou V.ª Ex.ª, uma vez mais, aqueles que pagam, sempre o fizeram e assim continuam.
Quanto à oligarquia de riqueza ostensiva, na qual se inclui a classe política, continua arrogante, impune... e não tributada.
No outro extremo, marginais que nunca trabalharam são encorajados a jamais o fazerem, mediante subsídios da Segurança Social, numa pedagogia leviana e suicidária, conquanto que eleitoralmente muito rentável.
Não sendo político não necessito de ser politicamente correcto. V.ª Ex.ª sabe, por demais, a quem maioritariamente são entregues os subsídios da Segurança Social: àqueles grupos étnicos que, justamente, perfazem o grosso da nossa população prisional.
Assim, in limine, o subsídio é, na realidade, um suborno pago aos marginais para os manter controlados. Dada a maneira como V.ª Ex.ª trata as polícias e a magistratura faz todo o sentido. É mesmo muito inteligente e pragmático.
Não sei é se será ético mas, olhando em redor, essa é uma palavra em desuso.
Ora o certo é que a Segurança Social não vive das contribuições dos políticos, - reformados ao fim de oito exaustivos anos de trabalho. Vive das nossas.
E V.ª Ex.ª, ao alterar, de forma unilateral e, repito, retroactiva, o contrato que me ligava ao Estado, denunciou esse contrato.
V.ª Ex.ª decerto concordará que, se não fosse o Estado mas uma pessoa individual a praticar estes actos, tal teria um nome pejorativo e uma sanção penal. Assim como se se tratasse de uma empresa ou qualquer outra entidade patronal haveria, indiscutivelmente, lugar a uma indemnização por quebra de contrato.
Pelo que, reportando-me aos princípios de equidade que seria suposto regerem o país, peço em meu nome, e dos médicos das carreiras públicas, igualdade de tratamento com os senhores deputados da nação, naquilo que V.ª Ex.ª muito bem definiu como «justas expectativas».
Respeitosamente.
Coimbra, 28 de Junho de 2005
* Assistente Hospitalar Graduado de Psiquiatria nos HUC